Como um kit de teste de DNA revelou um segredo de família escondido por 54 anos
POR DANI SHAPIRO
publicado em 3 DE JANEIRO DE 2019 na Time
A escritora Dani Sahpiro escreveu um livro sobre verdade acerca da sua ancestralidade |
Uma noite do inverno de 2016, meu marido mencionou que estava mandando um daqueles kits comerciais de teste de DNA. Ele perguntou se eu queria que ele pedisse um para mim também. Eu poderia facilmente ter dito não. Eu não estava curiosa sobre a minha ancestralidade. Afinal, sabia de onde vinha – éramos judeus ashkenazi da Europa Oriental tanto do lado do meu pai quanto do da minha mãe. Em vez disso, eu disse sim. Por que não? Parecia um jogo – como aqueles testes de personalidade que as pessoas costumam fazer online.
Os resultados, quando os recebi alguns meses depois, mudaram tudo que eu já havia entendido sobre mim. Eu era apenas metade ashkenazi do Leste Europeu, como descobri.
Uma pessoa de quem eu nunca ouvira falar foi identificada como uma prima de primeiro grau. A verdade era inevitável. Meu querido pai, que morreu em um acidente de carro quando eu tinha 23 anos, não era meu pai biológico.
Essa descoberta me levou a um mundo que eu não conhecia: a história, a ciência e os fundamentos psicológicos da reprodução assistida. Passei os últimos anos reunindo a história de como vim a ser, a verdade de onde (e quem) vim — e as maneiras pelas quais minha identidade foi escrupulosamente escondida de mim mesma.
Essa descoberta me levou a um mundo que eu não conhecia: a história, a ciência e os fundamentos psicológicos da reprodução assistida. Passei os últimos anos reunindo a história de como vim a ser, a verdade de onde (e quem) vim — e as maneiras pelas quais minha identidade foi escrupulosamente escondida de mim mesma.
Em 1961, meus pais, judeus ortodoxos que se casaram tardiamente, estavam tendo problemas para engravidar. Meu pai fazia parte de uma grande família que levava a sério o mandamento de frutificar e se multiplicar. Minha mãe, de quase 40 anos, estava desesperada para ter um filho.
Eles foram para o extinto Instituto Farris para Paternidade, perto do campus da Universidade da Pensilvânia. Lá, foram informados de que um “tratamento” estava disponível para ajudar a resolver a infertilidade do meu pai. Uma prática da época era misturar o esperma de um doador com o esperma do pai pretendido, a fim de manter viva a possibilidade de que o filho fosse biologicamente seu. Havia um termo comumente usado para isso: inseminação artificial confusa.
Confusa de fato. Naquela época, a instituição médica fazia muito esforço para permitir que os casais acreditassem no que queriam sobre o que estavam fazendo. Os casais eram instruídos a fazer sexo antes e depois do procedimento para aumentar a sensação de que o marido (muitas vezes completamente estéril) poderia ser o pai.
Uma vez que a mulher engravidava, o casal podia ser informado de que seus níveis sanguíneos mostraram que ela já devia estar grávida quando ela foi para o Instituto Farris, aumentando a possibilidade de que duas pessoas racionais poderiam esconder a verdade de sua família, de seus amigos e deles mesmos.
O trauma e a vergonha em torno da infertilidade eram intensos. Em 1954, um tribunal decidiu que a inseminação por doadores constituía adultério por parte da mulher, quer o marido tivesse dado consentimento ou não. Nove anos antes, a TIME publicou uma história sobre o status legal de crianças concebidas por doadores com o título dilacerante Artificial Bastards?
Os registros foram fortemente codificados e, em seguida, destruídos. Os doadores de esperma tinham o anonimato garantido. Parecia seguro que o procedimento permaneceria em segredo para sempre. A ideia de um futuro em que os resultados do DNA se tornariam facilmente acessíveis por meio de um teste popular era inimaginável.
Agora, os avanços no campo da reprodução assistida também estão muito além do que poderia ter sido imaginado na época do meu nascimento. A fertilização in vitro, barriga de aluguel, óvulos de doadores, tecnologia criogênica e a capacidade de testar embriões para marcadores genéticos têm permitido que muitos mais de nós — heterossexuais ou gays, casados ou solteiros — façamos famílias. E isso é ótimo, mas não é uma coisa simples. Embora a ciência tenha evoluído a um ritmo impressionante, a capacidade humana de compreender e usar sabiamente esses avanços continua mancando.
O segredo que foi mantido de mim por 54 anos teve efeitos práticos que foram ao mesmo tempo impressionantes e perigosos: eu dei histórico médico incorreto aos doutores durante toda a minha vida. Uma questão é ter consciência da falta de conhecimento — como fazem muitos adotados —, mas outra completamente diferente é não saber que você não sabe.
Quando meu filho era bebê, ele foi acometido de um distúrbio convulsivo raro e frequentemente fatal. Havia uma possibilidade de que fosse genético. Eu disse com confiança a seu neurologista pediátrico que não havia histórico familiar de convulsões.
Mais difíceis de quantificar são os profundos efeitos psicológicos de tais sigilos e segredos. Cresci me sentindo “outro” — diferente da minha família de distintos modos que eu não entendia. Eu não me parecia em nada com meu pai e ouvia constantemente que não "parecia" judia. Eu vivia cheia de saudade e nostalgia, mas por algo que eu não sabia o que era.
A atmosfera na casa de minha infância era pesado com o 'não dito'. Eu senti, percebi, mas não tinha um nome para isso. O psicanalista Christopher Bollas chama isso de “conhecido impensado” — o que sabemos perfeitamente, mas não podemos sequer nos permitir pensar.
Nós nos encontramos em um intervalo de tempo interessante. Os segredos que cercam a identidade existem desde o início da humanidade. O Velho Testamento está repleto deles. As pessoas viveram e morreram sem nunca saber a verdade sobre si mesmas.
Mas agora — por causa da potente combinação de testes de DNA e da Internet — esses segredos estão sendo revelados. Em algum ponto de um futuro não muito distante, a própria ideia de que tais segredos de identidade foram algum dia guardados parecerá ridícula.
Os EUA não têm leis que limitem o número de filhos que um doador de esperma pode produzir, nem regulamenta o anonimato.
Vários países restringem o número de descendentes de um doador, variando de um (Taiwan) a 25 (Holanda). Mas os EUA e o Canadá contornaram esse território eticamente espinhoso, permitindo a possibilidade de que meio-irmãos se casem inadvertidamente e tenham filhos.
[NT: No Brasil não há lei que regulamente a doação de sêmen garantindo o anonimato do doador, existe apenas uma Resolução do Conselho Federal de Medicina (Resolução CFM nº. 1358/92), com algumas ponderações, que trata apenas dos aspectos éticos da questão. As demais normas para as técnicas de reprodução assistida estão na Resolução CFM nº 2168 de 2017]
E depois há a questão do anonimato. Pessoas doando espermatozóide ou óvulo (e já que estamos nisso, doar é um termo impróprio, já que a transação geralmente envolve pagamento) agora devem saber que não podem elas não vão permanecer anônimas para sempre.
Se o irmão, sobrinha, primo ou neta do doador tiver submetido o DNA a um dos locais de teste, será muito mais fácil encontrá-lo.
Demorou apenas 36 horas desde o momento em que soube que meu pai não era meu pai biológico até que encontrei o homem que era. Ele tinha 78 anos — um médico aposentado e especialista em ética médica — e posso imaginar como ele deve ter ficado surpreso ao receber meu e-mail com o assunto 'Carta importante' .
Mas homens e mulheres que doam seu material reprodutivo hoje — listados em catálogos com títulos bonitos (“Alto, Moreno e Bonito”, “Vibrações Positivas”, “Ajuste e Divertimento”) — precisam pensar sobre as consequências vivas de sua doação.
Doar espermatozoides ou óvulos não é o mesmo que doar um rim, uma retina, um fígado, um coração. Ele carrega consigo algo que toda a ciência do mundo não consegue entender: vou chamar esse "algo" de alma.
Compartilho muitos traços físicos com meu pai biológico — seus olhos azuis, cabelos claros, pele pálida, tendência a corar; suas mãos pequenas e testa alta. Isso seria esperado. Mas também compartilhamos o mesmo romance favorito: Crossing to Safety, de Wallace Stegner. Temos um senso de humor e uma reserva natural semelhantes. Quando o conheci, entendi, pela primeira vez, de onde vinham aspectos de minha própria personalidade.
Se o desejo de procriar é um dos mais poderosos impulsos humanos, também o é o desejo de conhecer nossa própria identidade. No complexo cálculo da medicina reprodutiva, a conquista de um bebê é considerada o fim — um sucesso — quando na verdade é apenas o começo. Não foram realizados estudos de longo prazo cientificamente controlados sobre os efeitos psicológicos e emocionais da concepção do doador.
Nos três anos desde minha descoberta sobre meu pai, passei a pensar na questão da divulgação da seguinte forma: se uma conexão genética com uma criança é tão importante, tão valorizada, e esta é a razão pela qual pais esperançosos escolhem a rota do doador em vez do que a adoção, então a criança também tem o direito de saber suas próprias origens. Ou é importante — nesse caso, é importante para todos os envolvidos — ou não é.
É difícil nascer. É um desafio para qualquer um de nós crescer, ser um ser humano. Basta pensar no ensino médio! Os desafios só aumentam quando somos concebidos por doadores. A questão é fingir o contrário.
Com muita frequência, os pais de crianças concebidas por doadores e a indústria de medicina reprodutiva preferem pensar no doador como necessário, mas sem outras consequências. Os direitos dos pais e do doador são pesados e cuidadosamente considerados — mas não os do ser humano que a transação existencial produzirá.
E também existe o temor de que a regulamentação seja um impedimento para uma parte do sucesso estrondoso da indústria reprodutiva. O que acontecerá se as doadoras de espermatozoides e óvulos não puderem mais permanecer anônimas? Menos pais podem se sentir confortáveis ao escolher esse caminho, e menos homens e mulheres podem doar. Se meu pai biológico soubesse que um filho seu viria bater à porta um dia, ele nunca teria doado e eu nem estaria aqui.
Há alguns sinais de mudança - com livros infantis sobre o assunto e grupos de apoio online para filhos de doadores prolíficos — mas eles não vão longe o suficiente.
Embora essas atitudes sociais em evolução sejam um desenvolvimento positivo, elas não representam políticas concretas necessárias. As crianças nascidas dessas tecnologias devem ser a primeira prioridade, pois a ciência nos empurra para um futuro que mal podemos imaginar.
O livro de Shapiro Inheritance: A Memoir of Genealogy, Paternity and Love (algo como Herança: uma memória de genealogia, paternidade e amor) foi publicado em 2019 pela Knopf. Não tem tradução em português, mas está disponível em inglês para o Kindle.
Essa matéria apareceu na edição de 14 de janeiro de 2019 da TIME e foi publicada online.
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