O nonno Vincenzo: dramas e glórias de quem viveu a aurora do século passado

por Walter Falceta *
jornalista


Vincenzo Falzetti em seu uniforme do
antigo Desinfectório Central paulista


Meu bisavô Vincenzo Falceta  [Vincenzo Falzetti] viveu de 1864 a 1929. Nasceu na simpática comuna de Carolei, na Calábria, e morreu em São Paulo. Em 65 anos, viu mudanças muito mais dramáticas do que aquelas vistas por meu avô, meu pai, por mim e por meus filhos.

Para começar, a noite… A noite da época era um breu, impenetrável, assustadora e imobilizante, mesmo onde o óleo e o gás acendiam lampiões. No sul da Itália, depois que o sol descia sobre o Mar Tirreno, o lobo sorrateiro e feroz mantinha todos em casa.

Nonno Vincenzo aventurou-se ludicamente por florestas altas dos Apeninos calabreses, ouviu sobre a rebeldia dos brutti, aprendeu sobre a saga de Spartaco, assistiu a muitas missas e experimentou o preconceito de quem considerava os meridionais como inferiores.

Vale dizer que a unificação do país somente se completaria em 1870, com a conquista de Roma. Meu trisavô Michelle, nascido em 1834, certamente nutria inquietante dúvida sobre o que era ser italiano.

Vincenzo cresceu, casou-se, teve uma fileira de filhos e, de repente, percebeu que nada havia no horizonte, exceto a faina dura premiada com a pobreza digna.

Na virada do século, encantou-se com o folheto de uma empresa de emigração. Veio sozinho ao Brasil, crente de que enriqueceria no paraíso sul-americano da abundância. Depois, enviaria recursos para que a família viesse encontrá-lo.

Aqui, percebeu que as promessas não eram exatamente verdadeiras. O trabalho era escasso, insalubre e mal pago. As elites da terra também consideravam os italianos gente de segunda categoria. Eram maldosamente apelidados de “carcamanos”.

Vale dizer que um calabrês da época chegava ao Brasil falando seu próprio dileto, muito distinto da Língua de Dante. Encontrava, portanto, dificuldade até mesmo de se comunicar claramente com outros imigrantes da bota, como aqueles vindos do Vêneto.

Forte e esperto, Vincenzo fez de tudo, até que se acertou, malemá, vendendo peixe, no Bom Retiro e no Brás.

Passam-se os anos, todavia, e nada de sobrar recurso para restaurar a união familiar. Aos poucos, se envergonha. Retornar de mãos abanando seria uma desonra. Entristece-se e torna cada vez mais espaçada a correspondência.

Certa tarde, nas proximidades da atual Rua Joli, está descendo o cutelo sobre uma tilápia quando sente a cintura garroteada. Patre, patre! (Porque Babbo não era uma coisa de lá) Assombra-se. Mal reconhece. É um de seus filhos. Logo, outros se juntam ao abraço coletivo. Atrás, divisa duas lágrimas penduradas nos verdes olhos trentinos de Concetta.

Mas como? Ela vendeu o que tinha na Calábria e, sem aviso, veio ao Brasil. Dá um livro a saga da brava nonna para encontrar o marido, cujo endereço, na época, desconhecia.

A vida de Vincenzo rende outro livro. Ele se tornou um dedicado funcionário do Desinfectório Central e serviu com coragem e dedicação o médico sanitarista Emílio Ribas. Confiante no doutor, ele e outros companheiros se deixaram picar por vários mosquitos no curso da pesquisa sobre a febre amarela.

Vincenzo teve seus dias de dor e glória em 1918, durante a epidemia de Gripe Espanhola, que ceifou milhões de vida no mundo inteiro. Com seu equipamento para aspergir antissépticos e seu carrinho de mão, no qual acomodava doentes e defuntos, percorria valentemente a cidade. Foi por esse ato de heroísmo que uma praça paulistana ganhou seu nome, anos atrás.

O nonno fundador do clã, formidável figura da categoria dos carroceiros, experimentou o desterro, o preconceito, a distância da família, a exploração laboral, os efeitos de uma guerra mundial e os horrores de uma peste devastadora.

Ao mesmo tempo, no entanto, assistiu à ocorrência de maravilhosos eventos em sua trilha de vida. Falemos de São Paulo. Imagine, caro leitor, o que era mover-se em charretes ou a pé, palmilhando pedra e lodo. Motor era cavalo ou burro.

De repente, em 1899, chega a Light e, em 1900, pronto!, fez-se o bonde elétrico, unindo o Largo São Bento à Barra Funda.

Logo depois, já havia automóveis. Santos Dumont já tinha importado um Peugeot, na última década do Século 19. Mas o que realmente chocou o Nonno foi ver desfilar, na Avenida São João, o carro do Conde Matarazzo, o primeiro a ser registrado no Brasil, em 1903.

Pouco depois, em 1905, ele foi assistir a um portento da revolução industrial: a inauguração das primeiras lâmpadas elétricas da cidade, na Rua Barão de Itapetininga, obra dos trabalhadores a serviço da The São Paulo Tramway, Light and Power Company. Em 1907, as luzes noturnas estavam instaladas também no triângulo das ruas Direita, XV de Novembro e São Bento.

Para Vincenzo, os lampiões a gás já representavam enorme progresso. A eletricidade, porém, o encantou tremendamente. Nunca mais, nunca mesmo, precisaria temer os lobos.

Nesse mesmo ano, queixos caíram com a chegada do cinema à cidade. O Bijou-Theatre alterou para sempre a perspectiva de mundo dos paulistanos. Para completar a metamorfose, a exótica Sar Phará protagonizou o primeiro strip-tease artístico público, completo, no Casino Paulista. Nessa época, os cabarés promoviam saraus elegantes, trazendo à “capital da solidão” a subversiva cultura parisiense. A arte nouveau ascendia aos frontispícios e dependências dos casarões dos Campos Elíseos e da Avenida Paulista.

Foi também uma fabulosa época de construção da consciência do proletariado. A comunidade do Bom Retiro, onde vivia Vincenzo, vibrara em 1901 com os artigos do jornal anarquista La Battaglia, obra de Oreste Ristori. O periódico depois passou ao comando de Gigi Damiani. Em 1912, funde-se com o Germinal e transforma-se no combativo La Barricata. Germinal, aliás, era o nome de uma fantástica escola anarquista do Bom Retiro. Aprendia-se de tudo, com base na razão, na ciência e no interesse coletivo.

Ali pertinho, em 1910, a gente toda do povão funda o Sport Club Corinthians Paulista, para tornar-se vez e voz dos excluídos. O primeiro presidente do clube é um vizinho de Vincenzo, o ítalo-brasileiro Michelle Battaglia, que assim define a nova entidade: “este é o time do povo, e é o povo que vai fazer o time”. Nada mais era que uma adaptação da tese do anarco-pensador Errico Malatesta: “nós, anarquistas, não queremos emancipar o povo, mas criar condições para que o próprio povo se emancipe”.

Vincenzo e meu avô Michelle logo se apaixonam por aquela atrevida invenção do ludopédio. O Corinthians é para todos, e não somente para os barões e bacharéis. O período é efervescente e a onda da mudança varre a cidade. Os teatros anarquistas animam as noites do Brás, do Bom Retiro e da Lapa. Há piqueniques na beira do Tietê, ali perto de onde se reúnem os operários do Grupo Ponte Grande.

Viver em 1910 foi passear na montanha russa do tempo. Foi o ano do início da Revolução Mexicana, da Revolta da Chibata e das peripécias do “maluco” Dimitri Lavaud, de Osasco, que construiu e fez voar o primeiro avião brasileiro. Imagine o impacto disso! Dez anos antes, o movimento dependia de tração animal. Agora, máquinas mais pesadas que o ar varavam as nuvens.

Em 1917, toda a massa política operária se reuniu naquele que é proporcionalmente o maior e mais bem-sucedido movimento da classe trabalhadora brasileira. Cruzamos os braços, paramos, enfrentamos, morremos, sobrevivemos e vencemos. A grande greve, com alicerces no Brás, Bom Retiro e Barra Funda, mudou o Brasil para sempre.

Aquele início de século foi também marcado pela evolução da ciência, pelo surgimento de novas vacinas, pelas descobertas no campo da proteção sanitária. Era o que mais entusiasmava o nonno, que se tornou o primeiro motorista habilitado da saúde pública em São Paulo. Depois disso, ele saiu pelo interior do Estado para debelar epidemias e ensinar as pessoas sobre cuidados na prevenção de doenças infecto-contagiosas. Enfim, a vida ia ficando melhor a cada dia.

Poucos anos depois, em 1922, surgiu o rádio. E realizou-se a Semana de Arte Moderna, para glória dos estetas insurretos e horror dos mofados conservadores. Logo em seguida, eclodiu uma revolução destinada a romper paradigmas na política nacional. Preparava-se a queda da Velha República. A casa vizinha a de Vincenzo, na Rua Anhaia, explodiu com uma bomba lançada por um avião das forças federais. Vovô Michele, ousado, praticou a desobediência civil. A roda da história girava. Veloz.

É certo que nonno Vincenzo foi o mais perfeito personagem de Heráclito. Foi sempre outro, banhando-se no rio em célere processo de mutação. Mais do que viver a época áurea das transformações, figurou como protagonista dela, fazendo a novidade do bem acontecer. Neste 2022, a pergunta que fica é: quais foram as inovações realmente impactantes que marcaram este estranho Século 21? Será que vivemos de fato uma época disruptiva e favorável à evolução do rito civilizatório? Em breve, em outro artigo, vamos discorrer a respeito.


Este artigo foi publicado inicialmente no site Construir Resistência 

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*  Walter Falceta é jornalista profissional,  casado, com filhos.  Nasceu e vive em São Paulo. Foi repórter da revista Veja e do jornal Estado de S. Paulo,  repórter e coordenador de Nacional e Política da sucursal paulista de  O Globo, editor da revista Nova Escola, editor de Todosport Brasil, produtor de conteúdos do Meio & Mensagem e editor pioneiro do serviço de Internet do Estadão (NetEstado). Trabalhou em várias campanhas políticas e foi um dos integrantes do comitê de imprensa da campanha presidencial de Lula, em 1994. Tem especialização em Antropologia Visual. Atualmente,  trabalha na redação e edição de livros.  Corinthiano por herança e por coração, também foi presidente do Coletivo Democracia Corinthiana.

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